March 18, 2025

Recentemente, li o dulcíssimo Livro das Horas, de Nélida Piñon. A ausência do artigo definido O” no título oferece um campo fértil para uma análise semântica e sintática rica. Sob a ótica linguística, a presença ou ausência de artigos pode alterar substancialmente a construção do significado, refletindo nuances de subjetividade e de interpretação no texto.

Capa do Livro das HorasCapa do Livro das Horas

O artigo definido O” tem a função de especificar, de indicar que estamos tratando de um objeto particular e determinado. No caso de O Livro das Horas, o uso do artigo confere uma concreção ao conceito, referindo-se a um livro específico, talvez uma obra de autoridade, uma que se impõe de maneira única. Contudo, ao omitir esse artigo, o título se torna mais abstrato, mais geral, o que pode ser interpretado como uma tentativa de despojamento de qualquer pretensão de definitividade. Livro das Horas sem o O” surge, então, como um símbolo mais fluido e aberto, sugerindo que as horas” podem ser compreendidas não como uma unidade de tempo fixa e concreta, mas como algo que flui, se desdobra, como se cada leitor pudesse construir sua própria relação com o conceito de tempo e de transitoriedade.

Sem o artigo, o título adquire um caráter de generalização, mais universal. Ele evoca o livro como uma instância simbólica que pode se manifestar em várias formas, remetendo a uma pluralidade de livros”, metafóricos ou concretos, que existem na imaginação humana. A hora” aqui também perde sua conotação de medida exata, tornando-se uma representação das fases e momentos que compõem a experiência humana.

Linguisticamente, isso pode ser interpretado como uma estratégia de distensão do significado, uma maneira de ampliar a interpretação e permitir que o título se inscreva em um plano mais filosófico, em que o Livro das Horas” não é algo fixo, mas sim uma categoria representativa da temporalidade em sua mais ampla acepção. Neste sentido, Nélida Piñon, ao retirar o artigo, coloca o título da obra em um plano de indeterminação que ressoaria com as tensões do texto, que se dedica justamente a refletir sobre a complexidade do tempo e da memória.

Foi no Livro das Horas que Nélida Piñon descreveu de maneira comovente a morte de Clarice Lispector.

Ela, grande amiga de Clarice, narra com uma intimidade poética e tocante a experiência de sua partida, mostrando não apenas o impacto emocional que a morte de Clarice causou nela, mas também capturando a essência do caráter da escritora. A morte de Clarice, em 1977, é retratada de forma quase lírica, e o relato de Nélida emerge como um momento de luto profundo e de reflexão sobre a finitude da vida e o legado literário deixado por sua amiga.

Trecho do livro sobre a morte de ClariceTrecho do livro sobre a morte de Clarice

No livro, Nélida descreve a morte de Clarice como uma espécie de evento suspenso, como se a própria morte da escritora fosse uma passagem que se confundisse com os tempos da literatura, da memória e da eternidade. A forma como ela escreve sobre o momento da morte de Clarice pode ser lida como uma tentativa de captar a transcendência da amiga, cuja escrita, embora tenha sido interrompida pela morte, continua a viver na memória coletiva e na literatura brasileira.

A narrativa não é apenas um relato factual, mas um testemunho da amizade entre as duas escritoras, que se via também como uma celebração da criação literária. O episódio da morte de Clarice, assim, é um dos pontos centrais de reflexão sobre a relação com a morte e o legado imortal das grandes figuras literárias que transcendem o tempo físico. A delicadeza com que Nélida escreve sobre esse evento revela o profundo respeito e admiração que ela tinha pela escritora e pela sua obra.

Enfim, eu leria várias e várias vezes esse livro, pois a cada leitura ele se revela de uma maneira nova, mais rica, mais profunda. O Livro das Horas é um convite constante à reflexão sobre o tempo, a memória e a morte, mas também sobre a literatura em si, sua capacidade de transcender a temporalidade e de tocar os recantos mais íntimos da alma humana.

Cada palavra de Nélida Piñon é como uma chave que abre portas para significados múltiplos, e ao revisitar suas páginas, o leitor é confrontado com uma experiência de leitura que, assim como o tempo, se reinventa. Este não é apenas um livro para ser lido, mas para ser vivido em diferentes momentos da vida, sempre com algo novo a ensinar sobre as relações humanas, a literatura e a existência.


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